Único paraibano presidente da República, Epitácio Pessoa morria 80 anos atrás

Único paraibano presidente da República, Epitácio Pessoa morria 80 anos atrás

Paraibano ocupou cargo nos três poderes da República, foi chefe da delegação brasileira no Tratado de Versalhes, juiz no Tribunal de Haia e eleito presidente enquanto estava fora do país. Mas, em 1930, deixou a vida pública para nunca mais voltar.

Treze de fevereiro de 1942, exatos 80 anos atrás. Eram tempos de Segunda Guerra Mundial e crescia a pressão popular para que o Brasil declarasse guerra à Alemanha, o que de fato aconteceria em agosto daquele mesmo ano. As questões diplomáticas eram efervescentes. Os diálogos públicos e de bastidores aconteciam a todo o momento. O mundo estava em compasso de espera. Mas, longe dos holofotes, num casarão localizado no sítio Nova Betânia, em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, morria de forma discreta e quase sem alarde um dos paraibanos mais importantes da história, único do estado a ter passado pela Presidência da República. Trata-se de Epitácio Pessoa, político de origem coronelista que por mais de 15 anos deu as cartas nos rumos políticos da Paraíba e que em diferentes momentos da vida passou pelos três poderes da República.

Epitácio, afinal, foi deputado constituinte da primeira constituição da República, ainda no século 19, deputado federal e senador, ministro do Supremo Tribunal Federal e, em 1919, chefe da delegação brasileira no Tratado de Versalhes, que definiu as novas fronteiras do mundo após a Primeira Guerra Mundial. Depois de passar pela Presidência da República entre 1919 e 1922, ainda foi juiz do Tribunal Permanente de Justiça Internacional de Haia, sendo o primeiro brasileiro da história a ocupar o cargo.

Por tudo isso, causa estranheza a forma quase anônima com que morreu, aos 71 anos de idade, fora da vida pública há mais de uma década e sem participar das articulações políticas que se seguiam em tempos tão extraordinários.

“É difícil dizer o que aconteceu. Ele foi se recolhendo com o tempo e ficando cada vez mais recluso. Tinha uma vida calma e tranquila nos últimos anos. Era visitado constantemente por intelectuais de todo o mundo, sua casa era um ponto de referência em Petrópolis, mas já não participava da vida pública. Epitácio saiu da política no início da década de 1930. A morte de João Pessoa mexeu muito com ele”, analisa Matheus de Medeiros Lacerda, que é formado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba, onde pesquisou a diplomacia presidencial de Epitácio Pessoa.

Matheus Lacerda, pesquisador da diplomacia em Epitácio Pessoa — Foto: Matheus Lacerda/Arquivo Pessoal

Matheus Lacerda, pesquisador da diplomacia em Epitácio Pessoa — Foto: Matheus Lacerda/Arquivo Pessoal

João Pessoa, no caso, era sobrinho de Epitácio, que foi assassinado no Recife na época em que era governador (à época, ainda chamado de presidente de província) da Paraíba. De acordo com Matheus, foi pouco depois disso, e após Getúlio Vargas tomar o poder e assumir a Presidência, que o paraibano se retirou da vida pública para não mais voltar.

Infância solitária, formação acadêmica sólida, início na política

Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa nasceu em Umbuzeiro, no interior da Paraíba, em 23 de maio de 1865, ainda na época do Império. Era filho de donos de engenho, mas ficou órfão logo aos sete anos de idade, depois que os pais morreram vítima de varíola. Foi criado no Recife, assim, pelo tio Henrique Pereira de Lucena, o Barão de Lucena, um importante político do período imperial.

Muito por isso, teve uma infância solitária, em que se dedicou desde cedo às leituras. Estudou no Ginásio Pernambucano, um dos mais respeitados do Recife à época, e depois na Faculdade de Direito do Recife.

Professor da Universidade Federal da Paraíba, com doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e com larga experiência em Direito Internacional, Marcílio Franca Filho, que realiza pesquisas regulares sobre Epitácio Pessoa, destaca a importância desse período na vida do político paraibano.

“A Faculdade de Direito do Recife era um importante polo intelectual e cultural. Então Epitácio encontra esse ambiente cultural pulsante. E foi nesse ambiente que ele fez a sua formação”, explica o professor Marcílio Franca Filho.

Marcílio Franca, professor da UFPB e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra — Foto: TPR Mercosul / Divulgação

Marcílio Franca, professor da UFPB e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra — Foto: TPR Mercosul / Divulgação

Ainda na época de estudante, exerceu a função de promotor de Justiça. Primeiro na comarca de Ingá, na Paraíba; depois de formado, passou ainda pelas comarcas de Bom Jardim e Cabo, em Pernambuco. Mas, após desentendimentos com o juiz do município, que teve repercussões na imprensa pernambucana, pediu demissão.

Desempregado, pegou um navio em 1889 com destino ao Rio de Janeiro em busca de novas oportunidades. Foi bater à porta de seu irmão mais velho, José Pessoa, que era amigo do marechal Deodoro da Fonseca. Desembarcou no Rio, aliás, alguns dias antes da Proclamação da República, quando Deodoro viraria presidente e seu irmão se transformaria em ajudante de ordem do presidente. Passou assim a ter livre trânsito nos bastidores da República recém-criada.

“Ele era um intelectual e tinha fama de ser um jurista brilhante. Mas Epitácio, acima de tudo, era um homem de sorte. Parecia sempre estar no local certo, na hora certa”, comenta Marcílio.

Com o apoio do irmão e com aval do presidente, Epitácio acabaria sendo nomeado secretário-geral de Venâncio Neiva, o primeiro governador da Paraíba. Depois, seria eleito deputado constituinte da bancada paraibana que, entre 1890 e 1891, seria responsável pela primeira Constituição Federal da República.

Venâncio Neiva, primeiro governador paraibano do período republicano — Foto: Bahia Illustrada/Arquivo

Venâncio Neiva, primeiro governador paraibano do período republicano — Foto: Bahia Illustrada/Arquivo

Depois, contudo, em novembro de 1891, quando uma espécie de “golpe dentro do golpe” depôs Deodoro da Fonseca e colocou o marechal Floriano Peixoto no cargo, ele foi para a oposição. Como deputado federal, fez duros discursos contra o novo presidente entre os anos de 1892 e 1894. Mas, nas eleições daquele ano, teve a sua candidatura impugnada, numa manobra de Floriano para tirá-lo do Congresso Nacional.

A caminhada rumo ao topo

Em 1894, a situação política de Epitácio Pessoa não era das melhores. Perdera o seu mandato de deputado federal e não tinha influências nos rumos da Paraíba, após a ascensão de Álvaro Machado, o sucessor de Venâncio. Neste período, realiza viagens pela Europa, amplia seus estudos sobre Direito Internacional, começa a dar aulas como professor na Faculdade de Direito do Recife, a mesma em que estudara.

Faculdade de Direito do Recife, importante instituição de ensino onde Epitácio estudou e foi professor — Foto: Reprodução/TV Globo

Faculdade de Direito do Recife, importante instituição de ensino onde Epitácio estudou e foi professor — Foto: Reprodução/TV Globo

Mas, já em 1898, estaria de volta à vida pública, quando aceita o convite do presidente Campos Sales para ser ministro da Justiça, cargo em que permanece até 1901. Neste período, acumula em certo momento o cargo de ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, quando inclusive tem como secretário Machado de Assis, à época já um escritor consagrado e presidente da recentemente fundada Academia Brasileira de Letras.

“Ele sabia se aproximar do setor cultural para fazer política. Conviveu com Machado de Assis, se tornou próximo (anos depois) do maestro Villa-Lobos. Isso é algo marcante em sua trajetória”, comenta Marcílio.

Em 1902, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, ficando no cargo até 1912. “A passagem dele no Supremo é extraordinária. Chega a ser folclórica, porque ele nunca foi voto vencido. Nunca perdeu uma votação. É algo inédito”, prossegue Marcílio.

Em dez anos de atuação no Supremo, nenhuma derrota e Epitácio Pessoa — Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Em dez anos de atuação no Supremo, nenhuma derrota e Epitácio Pessoa — Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O ano de 1912 é importante também para Epitácio porque é quando morre Álvaro Machado, o que abre um vácuo de poder no seu estado de origem. As disputas nos anos seguintes vão ser com o monsenhor Walfredo Leal, aliado histórico de Álvaro. Mas Epitácio, que ainda por cima se elege senador em 1912, sai vitorioso das disputas, principalmente depois de derrotar o adversário nas urnas em 1915. A partir daí e até 1930, mesmo sem nunca ter ocupado o cargo de governador, nenhuma nomeação na Paraíba será feita sem o aval dele.

Entre 1914 e 1918, acontece a Primeira Guerra Mundial. E o Brasil é o único país da América Latina a enviar tropas para lutar ao lado dos aliados. Com o fim da guerra, em 1919, o Tratado de Versalhes vai definir o futuro do mundo. E Epitácio Pessoa é nomeado chefe da delegação brasileira, que ganha uma cadeira no conselho justamente por ter enviado tropas para a Europa. Na França, o seu lado diplomata seria celebrado.

“Epitácio não era apenas um estadista. Era também um estudioso sobre paz”, explica Matheus Medeiros.

Epitácio Pessoa passou seis meses na França, em meio aos debates sobre a Grande Guerra. Conseguiu incluir dois artigos no documento que diziam respeito aos interesses do país. E, quando voltou ao Brasil, voltou como presidente.

Epitácio Pessoa em Versalhes: é o sexto sentado da direita para a esquerda — Foto: MPPB

Epitácio Pessoa em Versalhes: é o sexto sentado da direita para a esquerda — Foto: MPPB

Eleito presidente longe do país

A eleição de Epitácio Pessoa para presidente guarda três marcas curiosas. Ele foi o primeiro nordestino eleito pelo voto direto, até hoje o único paraibano a ocupar o cargo e o único caso da história de uma pessoa que foi eleita fora do país, sem nem mesmo ter feito campanha.

Acontece que, em 1918, Rodrigues Alves foi eleito presidente. Mas adoeceu e morreu sem chegar a assumir efetivamente o poder. O vice-presidente Delfim Moreira assumiu o cargo e, pouco depois de Epitácio ter deixado o país rumo à França, Delfim convocou novas eleições.

Ruy Barbosa lançou sua candidatura. Mas o velho tribuno, apesar de respeitado diplomata, não era um nome que agradava a São Paulo e Minas Gerais, que dominavam à política nacional à época. Foi quando decidiram indicar a candidatura de Epitácio, recebendo o apoio de estados como Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul.

As eleições aconteceram em 13 de abril de 1919 e o paraibano venceu. Foram 249.342 votos a favor, contra 118.303 contrários. De repente, em Paris, o status político de Epitácio mudava de chefe de delegação para chefe de estado.

Campanha de Epitácio Pessoa foi realizada com ele fora do país — Foto: Arquivo Pessoal

Campanha de Epitácio Pessoa foi realizada com ele fora do país — Foto: Arquivo Pessoal

“Ele foi eleito fora do país. Único caso na história do Brasil. E mais uma vez, é o homem certo na hora certa. Um candidato jovem, agregador. Contra um candidato mais idoso, que já teve relações com a monarquia. Um adversário visto como antipático por muitos”, comenta Marcílio. “Foi o único nome que quebra a hegemonia da Política do Café com Leite”, completa ele.

Epitácio ainda fica na França até 7 de maio de 1919, quando os termos da paz que estariam no texto final do Tratado de Versalhes é entregue para apreciação das autoridades alemãs da República de Weimar. Depois, começa o retorno ao país, passando por Bélgica, Itália, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos.

Epitácio Pessoa vira notícia internacional em seu longo retorno da França para o Brasil — Foto: Matheus Medeiros/Acervo Pessoal

Epitácio Pessoa vira notícia internacional em seu longo retorno da França para o Brasil — Foto: Matheus Medeiros/Acervo Pessoal

Matheus Lacerda e Marcílio Franca Filho são unânimes em falar da importância da diplomacia e das relações internacionais iniciadas no Governo Epitácio. Ele manteve contato próximo como muitos países e foi na gestão dele que o rei da Bélgica visitou o país. Era a primeira vez que um chefe de estado estrangeiro realizava uma viagem oficial à República brasileira.

“Epitácio não era só retórica. Ele colocou muito em prática também. Era um tipo de homem que o Brasil produziu poucos”, indica Matheus. “O que os teóricos da política internacional chamam hoje de soft power, Epitácio já praticava intuitivamente mais de 100 anos atrás”, completa Marcílio.

Epitácio Pessoa foi o primeiro presidente brasileiro a realizar viagem oficial para os Estados Unidos — Foto: Matheus Lacerda/Acervo Pessoal

Epitácio Pessoa foi o primeiro presidente brasileiro a realizar viagem oficial para os Estados Unidos — Foto: Matheus Lacerda/Acervo Pessoal

Ele usou o desporto, a música, os grandes eventos como estratégia de divulgação política. Levou o rádio ao Brasil, organizou a ida da primeira delegação brasileira para os Jogos Olímpicos (na Antuérpia, em 1920), se aproximou diplomaticamente dos países europeus, organizou eventos culturais de grande porte, como a Exposição Internacional que comemorou o centenário da independência, acabou com o banimento da Família Real do Brasil, se aproximou de pessoas da arte.

“Epitácio se utilizava de todas as ferramentas que até então não eram comuns para fazer política”, destaca Marcílio Franca.

Ainda assim, não teve um mandato tranquilo. Teve uma oposição ruidosa e enfrentou muitos problemas. Teve problemas com o Exército e com a imprensa e enfrentou, por exemplo, a Revolta dos Dezoito do Forte, reprimindo com violência uma tentativa de derrubada de poder que foi organizada por tenentes do Rio de Janeiro, então capital do país.

Os últimos anos

Epitácio Pessoa transferiu o cargo para o novo presidente eleito, Artur Bernardes, em 15 de novembro de 1922. Meses depois, assumiu sua cadeira no Tribunal Permanente de Justiça Internacional de Haia. Mais uma vez, sua vida cruzou com a de Ruy Barbosa. Esse tinha sido o nomeado para o cargo, mas morreu antes de tomar posse. E, em seu lugar, foi nomeado Epitácio.

Tribunal de Haia: Epitácio Pessoa atuou no órgão entre 1923 e 1930 — Foto: Peter Dejong/AP

Tribunal de Haia: Epitácio Pessoa atuou no órgão entre 1923 e 1930 — Foto: Peter Dejong/AP

Ainda nos anos de 1920, voltaria a ser senador pela Paraíba. E, em paralelo a isso, manteve uma profícua atuação como estudioso e pesquisador de Direito Internacional e seguiu com os trabalhos em Haia. Em 1930, indicou o sobrinho João Pessoa, que era governador da Paraíba, para vice-presidente na chapa de Getúlio Vargas, que acabaria derrotada.

Mas, meses depois, João Pessoa é assassinado. Em seguida, Getúlio Vargas toma o poder. Epitácio defendia a deposição do presidente Washington Luís, por entender as eleições que elegeu Júlio Prestes fraudulentas. Mas defendia uma saída democrática para o impasse, o que acabou não acontecendo.

Com a posse de Vargas, rompeu com o novo presidente pouco depois, ao dar um parecer jurídico contra uma reforma do STF que aposentou compulsoriamente quatro ministros que eram contrários ao presidente. É quando deixa o seu mandato de senador, renuncia ao cargo de juiz do Tribunal Permanente de Justiça Internacional de Haia e se retira para sempre da vida pública.

Em 2022, completa-se 80 anos de sua morte e 100 anos do fim de seu mandato como presidente. Mas, para Matheus Lacerda, a sua reclusão lhe tirou do foco.

“É incrível como ele simplesmente sumiu. A gente não fala sobre o nosso passado”, lamenta Matheus.

G1 Paraíba – Por Phelipe Caldas

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