Mesmo depois de o regime ter admitido que o coronavírus se espalhou pelo país, ajuda internacional segue sendo tabu. Plano de Kim Jong-un parece ser mais confinamento, apertar os cintos e propaganda interna.
Da última vez que Ken Eom conseguiu falar com seus familiares na Coreia do Norte, eles não pareciam especialmente preocupados em contrair o novo coronavírus. Uma apreensão bem mais imediata era conseguir comida suficiente ou dinheiro para comprá-la. Contudo a situação pode ter mudado nas últimas semanas.
Depois de escapar do Norte em 2010, Eom agora vive na Coreia do Sul, onde ajuda desertores de seu país, além de ser orador da organização Freedom Speakers International (FSI), sediada em Seul. Sempre foi perigoso tentar ligar para alguém do Norte, por isso ele não conversava regularmente com a família.
“Da última vez que consegui contato, eles nem mencionaram o vírus. O governo lhes disse que não havia coronavírus na Coreia do Norte, então eles acreditaram. Só me pediram para enviar dinheiro para comprar alguma comida. Mas agora eu tenho certeza de que também estão com medo do vírus.”
Desde que, em 12 de maio, Pyongyang finalmente admitiu que a covid-19 estava se alastrando praticamente sem controle entre a população, Eom não pôde mais falar com seus familiares, e teme que o vírus tenha se disseminado em sua cidade natal.
Única solução para Kim: isolamento total
A doença em si e o confinamento estrito imposto aos 25,78 milhões de habitantes tende a agravar as vicissitudes por que passam muitos norte-coreanos. Os familiares de Eom se mantinham precariamente, atuando como intermediários para contrabandistas que atravessavam a fronteira entre a Coreia do Norte e a China com cargas de gente, dinheiro em espécie ou bens de consumo passíveis de serem vendidos no Norte.
O governo fechou as fronteiras nacionais no começo de 2020, com o fim de conter o vírus, mas assim também impediu muitos de obterem qualquer tipo de renda. Com acesso limitado a medicamentos, poucos médicos nos hospitais e uma população majoritariamente mal nutrida e pouco saudável, cortar todas as ligações com o mundo exterior pareceu para o ditador Kim Jong-un ser a melhor solução.
Até 12 de maio, o governo relatou insistentemente que suas contramedidas haviam sido um sucesso total, não sendo registrado nenhum caso de covid-19 no país. Peritos médicos consideravam a alegação extremamente improvável, mas todas as organizações humanitárias estrangeiras já haviam sido expulsas do país, e não havia meio de verificar as notícias da mídia dissidente sobre cidadãos com febres não especificadas e mortos sendo sepultados às pressas.
Segundo analistas, a situação deve ser desesperadora, se o regime tem que admitir que seus esforços para isolar a nação falharam. E os números parecem confirmar a teoria: apenas no último domingo (22), a mídia estatal registrou 186.090 casos de “febre” por toda a Coreia no Norte, elevando a 2,65 milhões o número total de contágios – mais de 9% da população, apenas poucos dias após a admissão do problema.
As estatísticas governamentais alegam que 2,01 milhões já se recuperaram, mas o temor é que eles tenham simplesmente recebido alta dos hospitais ou clínicas mal-equipados para tratá-los e estejam disseminando ainda mais o vírus Sars-Cov-2.
Além disso, o número real de infectados é quase seguramente muito maior do que as cifras oficiais, já que o país não tem praticamente nenhuma capacidade para realizar testes. As experiências de outras nações também mostram que muitos portadores espalham o vírus mesmo sem apresentar sintomas.
Preservar prestígio antes de salvar vidas
“Talvez antes o povo acreditasse no governo quanto ao vírus, mas ele não acredita mais”, afirma Eom. “E estou muito apreensivo com a minha família. Não há efetivamente nenhum sistema médico para cuidar dos doentes, em especial sendo uma doença contagiosa como a covid, e não há nada para ajudar os mais vulneráveis. E isso tudo vem em cima da escassez de comida, com os cidadãos sob ordens de ficar em casa.”
Youngchang Song, da Worldwide Coalition to Stop Genocide in North Korea, com sede em Seul, tem escutado histórias semelhantes: “Lá é como a ‘tempestade perfeita’, no momento. O povo já está sofrendo com escassez, porque os meses de primavera, antes de as primeiras safras serem colhidas, são bem conhecidos como uma época de fome.”
“Agora, eles não podem sair aos campos para cuidar das suas colheitas, não há nada para comer e nenhum remédio nas lojas, não podem ir aos mercados clandestinos, e nada está sendo contrabandeado pela fronteira com a China. Simplesmente não há nada para eles. Os desertores que eu conheço, que conseguiram falar com amigos ou com a família, estão desesperados. Eles não podem fazer nada para ajudar.”
O governo sul-coreano e as agências da ONU têm deixado bem claro que estão prontos e dispostos a auxiliar o Norte, mas Pyongyang ignorou essas ofertas e só apelou por assistência à China e à Rússia, seus aliados tradicionais. Observadores não estão otimistas de que Kim vá colocar as necessidades de sua população à frente da perda de moral associada a aceitar ajuda do Sul ou das Nações Unidas.
“Considerando-se a terrível perda humana e econômica que a covid pode causar na Coreia do Norte, cabe torcer para que Pyongyang finalmente aceite assistência internacional”, comenta Leif-Eric Easley, professor associado de estudos internacionais da Universidade Ewha Womans, de Seul. “Mas o mero fato de o país ter admitido as infecções, não significa que ele vá vir de chapéu na mão até a comunidade internacional.”
“O roteiro de Kim para a covid é provavelmente confiar em mais confinamentos, aperto de cintos e propaganda interna, enquanto aceita discreta assistência da China”, estima Easley. “Mesmo que o governo finalmente priorize as vidas humanas perante temores de segurança em relação à ajuda internacional, os obstáculos políticos e logísticos norte-coreanos podem tornar difícil a distribuição rápida de vacinas.”
g1